É um trabalho de abrir portas
Em Vinhais, quando iniciamos o nosso trabalho, observava-se uma situação interessante. Por um lado as festividades locais relacionadas com caretos tinham vindo a aumentar de popularidade nos últimos anos, atraindo novas pessoas da comunidade para participar e muito público de fora para assistir. Por outro lado, a tecelagem local já tinha entrado em declínio (ou em extinção) há muitos anos, o que levou à situação caricata de haver necessidade de novos fatos, mas de não haver tecido local para esses fatos.
Tradicionalmente, eram as mantas velhas que eram aproveitadas para delas se fazerem os fatos das festas de caretos. A reutilização destas mantas, que sempre foram tecidas localmente, levou à criação de uma linguagem visual que facilmente conseguimos ler no aglomerado de fatos de caretos antigos usados em cada uma das regiões, como nas duas imagens dos caretos da Festa de Santo Estêvão, de Ousilhão (Vinhais) que vemos abaixo.
Imagem dos Caretos na Festa de Santo Estevão, que decorre em Ousilhão (Vinhais), onde conseguimos ver claramente a paleta de cores e os tecidos usados nos fatos tradicionais.
Imagem: Rota da Terra Fria
Imagem dos Caretos na Festa de Santo Estevão, que decorre em Ousilhão (Vinhais), onde conseguimos ver claramente a paleta de cores e tecidos usados nos fatos tradicionais.
Imagem: Rota da Terra Fria
Mas as festas não param e, na falta de mantas antigas e locais para cortar, os tecidos começaram a chegar de outras regiões do país e até de Espanha, começando-se a diluir a linguagem visual local, que era tão específica. O exemplo disso está nesta imagem que mostramos de seguida. Se olharmos com atenção, podemos ver que o fato do meio é claramente diferente dos outros dois: este foi produzido recentemente a partir de um tecido trazido de fora da região e não tem a mesma linguagem.
Nesta imagem, captada por nós em Janeiro de 2022, podemos ver que o fato na posição do meio é claramente diferente dos outros dois. Esse fato foi produzido mais recentemente a partir de um tecido trazido de fora da região.
Portanto, um dos objetivos do trabalho que fizemos era tornar a produção destes tecidos tradicionais novamente possível. Para isso, o primeiro passo foi fazer um levantamento de peças antigas (muitas mantas, mas também fatos de careto) a partir do qual pudéssemos identificar e registar as tipologias de tecelagem que eram usadas tradicionalmente em Vinhais. Este levantamento só foi possível com a ajuda de elementos-chave da comunidade, como a Sandrina e a Leandra, que nos ajudaram a abrir as arcas onde estas peças estavam guardadas.
O segundo passo foi traduzir estes tecidos para uma linguagem que pudesse ser entendida por qualquer tecedeira ou tecelão contemporâneo, em Vinhais ou noutro sítio no mundo.
A Tecelagem possui uma linguagem própria que é utilizada a nível mundial. Um pouco semelhante à forma como a Música e a Matemática têm a sua linguagem própria e que é o que permite que todos os músicos ou matemáticos se entendam entre si.
Cada uma das tipologias identificadas foi então traduzida para esta linguagem universal da Tecelagem, produzindo-se os debuxos e as fichas técnicas de cada um dos tecidos. Este trabalho foi realizado pela Guida Fonseca e pelo Fernando Rei, que, além de serem nossos formadores, já contam com anos de experiência especificamente na análise técnica de tecidos portugueses.
Estas fichas técnicas foram compiladas num pequeno manual, o “Tipologias de Tecelagem de Vinhais” que foi então distribuído pelos formandos de tecelagem do projeto do “Cultura para Todos”, mas que também está desde então disponível para todos, gratuitamente, através do nosso site.
A partir desse momento, qualquer tecedeira/tecelão passou a ter a possibilidade de tecer tecidos de acordo com as tipologias que se observavam em Vinhais.
A tradução dos tecidos tradicionais locais para a linguagem universal da Tecelagem tornou a produção destes tecidos novamente possível e mais acessível.
O manual das Tipologias de Tecelagem de Vinhais está disponível gratuitamente através do nosso site.
A ficha técnica de um dos tecidos tradicionais de Vinhais, presente no Manual Tipologias de Tecelagem de Vinhais.
No âmbito do projeto, novas pessoas receberam formação técnica na área da Tecelagem. Uma formação em que se aprende a tecer, mas também a ler remissas, fazer projetos, urdir, montar teias e mais. Uma formação que queremos com rigor técnico, em que os formandos recebam as ferramentas de base que lhes permitam explorar a Tecelagem como entenderem. Essa exploração pode ser local, mas também global.
Para não deixar dúvidas: este foi um trabalho técnico, baseado em conhecimento rigoroso e estruturado na área da tecelagem que permitiu reativar a produção destes têxteis em Vinhais e em Podence.
Voltamos então ao caso da Sandrina e da Sofia, que fizeram parte do grupo que receberam esta formação em Tecelagem em Vinhais, e que acabaram por montar uma parceria que lhes permitiu começar a produzir fatos de careto de acordo com as diversas tradições de Trás-os-Montes, não apenas de Vinhais. Nelas reconhecemos o grande esforço e força de vontade que são necessários para desenvolver um projeto desta natureza em Portugal.
Talvez o trabalho que fizemos na produção deste manual das Tipologias de Tecelagem de Vinhais e na formação que demos não tenha sido o suficiente para justificar o fantástico trabalho que elas têm desenvolvido, mas acreditamos que foi suficiente para abrir uma porta e criar a possibilidade da sua existência. E às vezes abrir portas às pessoas certas é tudo o que é preciso.
Tecidos produzidos pela Sandrina Fernandes do “O Barandoco”
Tecidos produzidos pela Sandrina Fernandes do “O Barandoco”

